Resposta a
António Curvelo
Um músico que escreve sobre música...
Rodrigo Amado

 

Não me considero um crítico, mas sim um músico que escreve sobre música. Esse é, aliás, um dos pontos referidos como positivo por muitas das pessoas que lêem os meus textos. Isso, e o facto de ter trazido para as páginas do jornal uma enorme abrangência estilística. Tenho também perfeita consciência da responsabilidade acrescida implicada no facto de ser músico de jazz e escrever num jornal generalista sobre essa mesma música. Ainda mais num meio pequeno onde todas as pessoas se conhecem.

A minha carreira como músico é conhecida, tem mais de 30 anos e não é segredo para ninguém. Assim como uma preferência estética pelas áreas de vanguarda, embora tenha, desde há muito, uma paixão pela música em geral, pelo jazz em particular, e um enorme respeito pelos músicos de todas as áreas do jazz, do mais conservador ao mais experimental.

Tentando contribuir de forma construtiva para um esclarecimento dos pontos por si levantados no texto “Das cousas e da Sua Memória”, foco-me em 3 pontos essenciais, para além da qualidade e relevância, que guiam a minha política de escolhas para o jazz no Público:

1. Uma grande abrangência estilística, cobrindo a maior extensão possível, dentro dos referidos critérios de qualidade e relevância.
2. Prioridade ao jazz nacional.
3. Uma total objectividade e isenção, tendo em conta que conheço bem muitos dos músicos envolvidos, nacionais e estrangeiros.

Em relação a estes três pontos gostaria de esclarecer:

1. Penso que, relativamente ao jazz nacional, a referida abrangência resulta óbvia dos nomes apresentados no meu texto anterior. Se analisarmos agora os músicos estrangeiros cobertos nos últimos 3 anos de escrita no jornal, podemos encontrar:

Esperanza Spalding, Evan Parker, Angelica Sanchez, Branford Marsalis, Ralph Towner, Perico Sanbeat, Joe Lovano, Bill Frisell, John Zorn, Bobo Stenson, Alan Silva, Gianluca Petrella, Wayne Shorter, Shirley Horn, Tony Malaby, John Coltrane, John Taylor, Keith Jarrett, Michael Blake, Frank Wright, Stacey Kent, Diana Krall, Marc Copland, William Parker, David El Malek, Paul Bley, Stan Getz, Dizzy Gillespie, Maynard Ferguson, Jon Hassell, Greg Osby, Patty Waters, Madeleine Peyroux, Tim Berne, Wadada Leo Smith, Jack DeJohnette, Martial Solal, Grachan Moncur III, Sonny Clark, Jackie McLean, Tony Bennett, Bill Evans, Nathan Davis, Alphonse Mouzon, Jan Hammer, Charles Mingus, Dave Douglas, Louis Sclavis, Lotte Anker, Craig Taborn, John Tchicai, Bill Evans, Sonny Rollins, Mark Turner, Henry Texier, Bad Plus, Brad Mehldau, David S Ware, Gary Peacock, Sten Sandell, Sam Rivers, Vincent Courtois, Sylvie Courvoisier, Ellery Eskelin, Chet Baker, Adam Rudolph, Rob Brown, Harris Eisenstadt, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Steve Kuhn, Thelonious Monk, Musica Elettronica Viva, Nate Wooley, Paul Lytton, Will Holshouser, Pat Metheny, Dave Holland, George Garzone, Stefano Bollani, Jurgen Friedrich, Dave Burrell, Dennis Gonzalez, Miguel Zenon, Joe Morris, Darius Jones, John Surman, Joshua Redman, John Abercrombie, Rob Mazurek, SF Jazz Collective, Mostly Other People Do The Killing, Portico Quartet, Bobby Hutcherson, Fred Hersch, Carla Bley, Ted Nash, Tomasz Stanko, Dee Dee Bridgewater, Satoko Fujii, Lena Horne, Matthew Shipp, Sabir Mateen, Peter Brotzmann, David Murray, Bruno Chevillon, Vienna Art Orchestra, Joe Pass, Keefe Jackson, The Necks, Scott Fields, Paul Motian, John Hollenbeck, Charlie Haden, Steve Swell, Bill Carrothers, Danilo Perez, Marilyn Crispell, Rudresh Mahanthappa, Steve Lehman, Enrico Pieranunzi, Ran Blake, Charles Evans, Chris Dahlgren, Dave Liebman, Billy Hart, Paolo Fresu, Miles Davis, Stephan Crump, Either Orchestra, Archie Shepp, Jason Moran, Mark Lomax, Ken Vandermark, Ornette Coleman, Michael Formanek, Jon Irabagon, Ravi Coltrane, Charles Lloyd, Cassandra Wilson, Daniel Carter, Kurt Rosenwinkel, John Butcher, Adam Lane, Ed Blackwell, Pepper Adams, Roscoe Mitchell, Kurt Elling, Daniel Levin, Bill Charlap, Renee Rosnes, Peter Evans, Arthur Doyle, Chris Potter, Exploding Star Orchestra, Paul Desmond, Gerry Mulligan, Elliott Sharp, Jamaaladeen Tacuma, Noah Preminger, Steve Coleman, John McNeil, Bill McHenry, Ambrose Akinmusire, Bill Dixon, Benny Goodman, Joachim Kuhn, Lee Konitz, Abdullah Ibrahim, Brian Carpenter, Marcin Wasilewski, Colin Vallon, Farmers by Nature, Vijay Iyer, Lars Moller, Uri Caine, Agusti Fernández, François Couturier, Dave Brubeck.

Uma lista impressionante, bem calibrada entre nomes históricos, nomes do mainstream e nomes da vanguarda. Quantos destes nomes apareceram nas páginas do jornal Expresso (uma vez que é o nosso concorrente directo) nestes mesmos 3 anos?

Ou, já agora, durante quaisquer 3 anos em que o António Curvelo escreveu para o Público?

Desta lista ressalta uma vontade expressa, em actos, não apenas palavras, de cobrir o jazz, actual e passado, em toda a sua variedade estética. Muito longe portanto daquilo que o António afirma ser “uma opção editorial estética e ideologicamente sectária”.

Claro que me reservo o direito de optar por não escrever sobre Chris Botti, Michael Carvin, Omar Sosa, Richard Bona, Roberta Gambarini, Michael Bolton, Karrin Allyson, Till Bronner ou mesmo Stefon Harris. É para isso que existe uma política editorial e é essa a personalidade da escrita sobre jazz no Público. Estou certo que o António faria de forma diferente.

2. Prioridade ao jazz nacional. Embora o António a considere “errada, porque redutora”, eu considero esta uma prioridade, sem qualquer tipo de dúvida. Se não forem os jornalistas portugueses a escrever sobre aquilo que é editado no nosso país, quem o irá fazer? Infelizmente, são poucos os projectos nacionais que têm projecção internacional. No Público tentamos cobrir a quase totalidade dos projectos editados, acabando por ficar de fora apenas os que não reunem os critérios mínimos ou que, por alguma razão, não nos chegam às mãos. Penso que é preferìvel gastarem-se os recursos, limitados, a falar do que tem qualidade, do que gastar tempo a dizer mal. As raras excepções são casos como o da cantora Jacinta, que vinha sendo anunciada como a grande voz do jazz nacional, equívoco que achei importante esclarecer (opinião minha, claro).

Felizmente, o número de edições nacionais de qualidade tem crescido a um ritmo tal que tem sido difícil manter a escrita em dia, estanto atrasadas recensões de albuns de Nelson Cascais, Baba Mongol, Manuel Mota, André Carvalho, Demian Cabaud, Lama, Elisa Rodrigues e Interlúnio, entre outros. Não há aqui quaisquer duas medidas diferentes para o jazz nacional e internacional, apenas uma atenção especial aos projectos que vão surgindo no nosso país, para promover o debate e incentivar o seu desenvolvimento.

3. Uma total objectividade e isenção. Como conheço bem, toco ou toquei com um grande número de músicos nacionais, sempre tive um cuidado particular em ser isento. De uma forma geral, é o Nuno Catarino que escreve sobre projectos nacionais. Quando o faço, não escrevo nunca sobre discos de músicos com os quais tenho uma amizade próxima – caso de Luis Lopes, dos membros do Red Trio, ou outros – e claro que os meus discos não são nunca sujeitos a crítica no jornal. Alguns músicos, como é o caso do Luis Lopes, ficam mesmo prejudicados pois discos de projectos seus como os Humanization Quartet (em que eu toco) não são criticados, e concertos seus raramente ou nunca têm antevisão (estou a lembrar-me da excepção relativa à sua participação no Jazz em Agosto). No caso de músicos como o Bernardo Sassetti, o André Fernandes ou o Carlos Barretto, que conheço bastante bem, se sinto que consigo ter a objectividade necessária, não hesito em escrever, de consciência tranquila. Claro que a maioria das pessoas sabe que sou um músico a escrever sobre outros músicos. Aqueles que me estão mais próximos queixam-se frequentemente do contrário, por exemplo na antevisão de concertos. Dizem que o cuidado com a isenção é tanto, que acabam mais prejudicados do que outros que não me conhecem. O facto é que a insinuação de que falo mais vezes sobre os músicos do meu círculo chegado de amizades é totalmente falsa e insultuosa, bastando para isso consultar os registos de todos os artigos publicados no jornal. Os músicos nacionais sobre os quais mais se escreveu no Público são, com inteira justiça, Orquestra Jazz de Matosinhos (número 1), Bernardo Sassetti, Mário Laginha, Carlos Bica, André Fernandes, Carlos Barretto, etc.

A escolha, por exemplo, do disco dos Red Trio como um dos melhores do ano, para além de ser uma escolha pessoal (nos melhores do ano não há outra forma de o fazer, e as listas são tão variadas como as pessoas que as fazem), trata-se realmente de um disco excepcional, facto que levou à sua escolha também como melhor do ano, nas listas principais, à frente de milhares de discos de jazz editados em 2011, na All About Jazz. Se acho realmente que é um dos melhores do ano, não vou deixar de escolhê-lo pelo facto de ser amigo dos músicos. O Raul Vaz Bernardo (Expresso) escolheu o César Cardoso. São estas diferenças que marcam a personalidade de quem escreve sobre jazz. Ninguém quer ler escriturários do jazz.

Nos anos em que participo num determinado festival – pela minha actividade como músico, isso acontece frequentemente – é o Nuno Catarino a fazer a antevisão ou crítica, sempre com instruções para se referir às actuações em que participo com particular contenção e referindo que sou jornalista do mesmo jornal. Até hoje não encontrei melhor forma de o fazer.

Quanto à crítica de edições Clean Feed, é esta que sai altamente prejudicada da minha anterior ligação à editora, ligação que terminou em 2005. Sendo a maior e mais importante editora mundial na área do jazz de vanguarda, seria natural que o jornal cobrisse grande parte das suas edições, aliás cobertas pela generalidade das publicações internacionais de referência. No entanto, por haver da minha parte um cuidado particular para não privilegiar a editora, para além dos discos de músicos nacionais, que são bastantes e dos mais importantes editados a cada ano (Bernardo Sassetti, Carlos Bica, TGB, Carlos Barretto, Júlio Resende, João Paulo, Hugo Carvalhais, entre muitos outros), em 2011, por exemplo, o Público apenas escreveu sobre os discos de Tony Malaby e Tim Berne, ficando de fora registos obrigatórios como “The Coimbra Concert” (Mostly Other People Do The Killing), “(Put Your) Hands Together” (Nate Wooley), ou “Riptide” (Gerry Hemingway), entre muitos outros. Também aqui me parece difícil ser mais justo e equilibrado.

Relativamente aos festivais de jazz, o Público efectua a antevisão de todos os que considera importantes no nosso país. Os critérios são de qualidade, relevância e dimensão, e a escolha da nossa exclusiva responsabilidade. As excepções ocorreram com alguns festivais cuja informação não nos chega atempadamente. Estou a lembrar-me dos casos do Festival de Valado dos Frades e do Jazz im Goethe-Garten, ambos festivais que respeito e admiro mas que sofrem de deficiente promoção. Os responsáveis pela promoção de Festivais como o Guimarães Jazz ou o Jazz em Agosto começam a enviar-nos informação, em alguns casos, 3 meses antes do evento. Portugal é um dos países da Europa com maior número de festivais de jazz e, como é compreensível, não podemos nem temos a obrigação de cobrir todos os que acontecem em território nacional.

Notas finais:
É impossível fazer uma crítica de música que não passe por nós próprios. É por isso que cada um de nós tem os seus críticos preferidos, aqueles nos quais confiamos e seguimos com admiração.

Penso que a análise simplista e demagógica de António Curvelo se deve ao facto de que o Público tem feito tanto pelo jazz, que agora alguns julgam natural exigir que se faça tudo, que se cubra todos os festivais, todas as mortes de artistas importantes, todos os discos. Isso não vai acontecer nunca, pois se assim fosse o prazer desaparecia, passaríamos a ser uns simples funcionários do jazz. Continuaremos sempre a reclamar o nosso direito de ouvir, ler, analisar e decidir sobre o que vale a pena escrever ou não.

Caro António, desfeita a ideia de que lhe faltaria informação sobre a nossa actividade, vai-se o respeito que tinha por si e fica um enorme desprezo por uma tentativa de denegrir e diminuir um trabalho que acredito ser de grande valor, embora não tenha nunca a pretensão de o fazer de uma forma perfeita.
Cumprimentos,

Rodrigo Amado

 

Textos anteriores:
António Curvelo: “Uma porta aberta para ouvidos fechados” (10 Dezembro 2011)
Rodrigo Amado: “Resposta aberta, contra a ignorância e irresponsabilidade” (16 Dezembro 2011)
António Curvelo: "Das cousas e da sua memória" (28 Dezembro 2011)